ritttual é um projeto que venho pensando há algum tempo e agora toma forma, diferente do que eu havia imaginado antes. Não é uma banda, mas também envolve isso. É uma mistura de coletivo de bandas, selo e núcleo de pesquisa, aberto a outras possibilidades.

Do jornalismo para a música

A primeira vez que lancei uma música foi há 15 anos, mais ou menos nessa mesma época do ano. No meu blog na época, eu tampava o rosto dos artistas sobre os quais escrevia porque queria reforçar que o que importava era a música, não a imagem ou o que eles eram (discordo hoje, mas não vou escrever sobre isso pra não estender mais ainda). Achava que, assim como os jornalistas-cineastas (ou o contrário), se eu começasse a tocar eu seria um jornalista melhor, porque entenderia mais sobre aquilo que escreveria. Passei na prova da banda da cidade (aquelas bandas de rua de cidade histórica mineira) e fui a uma única aula. Com a típica prepotência adolescente, não queria passar meu tempo ouvindo alguém me dizer o que era certo ou errado na música.

Pouco tempo depois uma amiga me apresentou a um software para fazer música. Eu não sabia que se podia crackear um programa e usava a versão demo, que não deixava salvar os projetos. Isso significava sentar no computador por 6, 8, às vezes 10 horas seguidas, e sair dali com uma música pronta. Na primeira música em que gravei uma guitarra (comprada pelo meu irmão por R$ 80 na mão de um metaleiro local), queimei a entrada de áudio do computador da minha mãe (o único da casa, óbvio). Eu tinha uma única faixa de um instrumento real e retrabalhei esse arquivo, cortando, colocando efeitos, tudo que conseguia, pra no fim fazer um monte de músicas. 

Nomes abertos e projetos temporários

Aí foi o início de um coletivo. Um coletivo de pseudônimos, de nomes abertos. Os nomes abertos são uma forma de ir contra à figura do artista, o egocentrismo, a figura iluminada. E pra ir contra o que eu considerava a transformação da arte em só mais um produto (rs), esse coletivo seria formado por projetos temporários. Cada um deles duraria pouco tempo, antes que fosse “assimilado pelo sistema” e perdesse sentido.

Na época, o Hermano Vianna deu uma entrevista dizendo que era uma das coisas mais legais rolando no Brasil. Dei entrevista pra vários veículos, tipo Estado de S. Paulo, tvs, rádios, cada vez fingindo ser uma pessoa. Usava muito o Tramavirtual e o Myspace (risos). Recebia convites pra shows em outros Estados e sempre inventava uma desculpa, tipo “os membros do coletivo não conseguem dispensa no trabalho”. Sendo que, na verdade, eu nem tinha como tocar aquilo ao vivo porque, como disse, o programa não salvava, tudo que eu tinha era uma série de mp3 exportados. E, claro, eu não fazia a mínima ideia de como tocar aquilo com instrumentos reais.

Apesar de ser um coletivo de uma única pessoa “real”, era tudo aberto. Senha de email etc. O engraçado é que alguém que eu nem sei quem é criou uma página no Facebook e, quando vi, tinha mais de 100 mil curtidas. A ideia era essa: que se fragmentasse, se transformasse em coisas novas. Totalmente sem controle. Sinto que hoje o risco de isso ser apropriado por um bando de imbecis de extrema direita jogadores de videogame seria muito alto.

sobre o ritttual

O ritttual começou como a ideia de um selo com pontes Brasil-Portugal-Japão. Aos poucos cresceu a vontade de ir além da música. Um selo que também lançasse outras coisas. E, na sequência, a vontade de experimentar no próprio formato de selo. Misturar pesquisa acadêmica, produção cultural e criação artística com os conceitos lá de trás, do coletivo, dos projetos temporários. Não delimitar previamente quais as possíveis ações, deixar tudo em aberto.

Então, hoje, o ritttual é a algo disforme que pode ter diferentes significados de acordo com qual parte dele você tem contato. As primeiras ações presenciais marcadas serão no meio de 2021. Como parte do processo de evolução da proposta, pretendo registrar por aqui os lançamentos e as mudanças no processo.

calmaria

“calmaria” foi o primeiro lançamento do ritttual. Não é algo que indique os caminhos sonoros do projeto, longe disso. Talvez seja a que mais destoe do restante, e por isso gostei da ideia de começar por ela. É como um falso início.

Ela não tem esse nome por causa da pandemia. Estava lendo Brasil: uma biografia, da Lilia Schwarcz e da Heloisa Starling, e em certa parte elas comentam que os portugueses traficantes de escravos tinham que fugir de determinadas partes da costa africana por causa da calmaria. É quando não há vento e as navegações ficam paradas no meio do mar. Se o fenômeno durasse muito, os mantimentos podiam acabar e todos morreriam. A imagem de centenas de escravos amontoados nos porões de navios parados no meio do oceano é o oposto da paz que geralmente acompanha o sentido da palavra “calmaria”. Foi essa ambiguidade que fez com que eu escolhesse esse nome.

Já a capa é uma xilogravura do Munch do fim do século 19. A mulher contemplativa em frente ao mar, vislumbrando seu futuro ou seu fim. Parece meio alheia à morte ao lado. Algumas interpretações que encontrei são de que a morte ali, ajoelhada, seria a própria mulher no futuro se observando, por isso estar de joelhos. 

Outro ponto é que se trata de um início definido por limitações. Ela foi gravada com as coisas que deixei pra trás quando me mudei, tudo aquilo que não era bom o suficiente pra ir comigo em uma nova fase da vida. A guitarra de R$ 80, a placa de áudio com defeito que tentei vender por mais de um ano e não consegui, os poucos pedais que eu mal usava e não achei que valia a pena ocuparem espaço na mala. Achei simbólico começar assim o ritttual.

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